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ARMELAU – A FRESTA SOMBRIA

Era uma manhã chuvosa. Os funcionários da ZT3 Paper Company chegaram de todos os lados com suas capas impermeáveis, galochas, capotes e capacetes, guarda-chuvas, cremes hidratantes de uso diário com óleo na composição.

Armelau vinha de uma noite de sono intermitente e estava extremamente sonolento naquela ocasião. Sorvia um copinho de café, quando notou que o cadarço de seu sapato preto estava em desalinho, quase desamarrado. Afastou um pouco a cadeira e abaixou-se para atar o cadarço. Percebeu algum movimento vindo da parede lateral. Notou a fresta escura entre o piso e o rodapé daquela parede. Foi ali que o movimento se encerrou com a evasão de um pequeno vulto para dentro da estrutura da edificação.

O funcionário então retornou aos seus trabalhos. Trinta minutos mais tarde, levantou-se da cadeira e usou toda a possibilidade de abertura da porta de seu gabinete, a fim de observar as outras duas portas à sua frente. A da esquerda, abrigava Moréia em seu tailleur azul marinho e com os saltos agulha Luis XV de todos os dias. A gerente administrativa se encarregava do computador à sua frente e da rede social no celular ao seu lado.

A maior parte de sua vida social ocorria dentro daquela pequenina tela. Nas redes sociais, a mulher encontrou vazão à sua solidão e fantasias de ascensão. Algumas das funcionárias compartilhavam essa visão de mundo, outras, além de refutar, sentiam pena da gerente e ofertavam alguma atenção ao seu discurso raso. Ela falava às suas subalternas da rede social como se aqueles fossem assuntos da maior relevância e grande importância: empolgava-se com fofocas, disseminava intrigas, comentava como informação dada a rotina de pessoas que ela sequer conhecia pessoalmente e menos ainda era conhecida das personagens em questão.

Armelau teve a impressão de notar uma outra fresta bem no canto da parede na qual estava assentada a mesa da gerente, entre o piso e o rodapé. O que chamou a atenção de Armelau para a imperfeição do edifício foi novamente um ágil movimento de uma pequena mancha para dentro da fenda. Ponderou que ZT3 Paper Company estava necessitando de uma dedetização.

Já a porta à direita da visão de Armelau, abrigava Bildo e Musca lutando arduamente com os fardos de papel. Em apenas uma semana a criatura assumiu o porte de seu progenitor, e criador e criatura alcançavam praticamente a mesma estatura. Ao notar o fato, Armelau ficou maravilhado com o fenômeno, porém não conseguiu concluir em tempo se a estatura de Bildo era de fácil alcance ou se Musca, o filho de Bildo, era um gênio transmutado.

Sob pretexto de descansar por dez minutos após cinquenta de atividade ininterrupta, Armelau levantou-se e seguiu pelo corredor à direita, a fim de apanhar mais uma abastada dose de café. Na volta da cafeteira, estacou diante à porta de pai e filho e disse olá, ao que ambos responderam sem erguer o olhar em direção à face do taxidermista amador. O sonâmbulo tentou iniciar uma conversa sobre a chuva copiosa, porém ficou igualmente com a indiferença de outra resposta curta e de concordância como um lacônico é. Gastou algum tempo ainda de pé à porta da sala de Bildo e Musca soprando e sorvendo o café e perscrutando com o olhar a junção do piso dos quatro cantos visíveis da sala, a fim de encontrar alguma fenda como as descobertas em sua própria sala e na de Moréia. Não encontrou nenhuma. No entanto havia a possibilidade de algum dos fardos ou das caixas de papel estarem em posição de ocultar a imperfeição. Mesmo insatisfeito, o prestidigitador sonolento retornou ao seu posto de trabalho, e porque não dizer, observação.

A caminho de seu gabinete, Armelau avistou Croco sentado diante à mesa de Moréia. Ambos estavam envolvidos em uma conversação híbrida de formalidade e descontração usada em anos por ambos sem jamais ser renovada. Sob o efeito Dopller, Armelau se aproximou da porta ouvindo em som crescente a mesma piada simulacro de deboche de Croco e se afastou ouvindo em tom decrescente a piada ser seguida pela mesma risada simulacro de reprovação de Moréia.   

Como sendo a porta de Armelau dotada do dobro da largura de cada porta situada à frente de sua sala, após sentar-se em sua cadeira, o sonâmbulo ainda lançou mais um olhar para dentro da sala à direita. Riu ternamente quando notou Bildo, que havia deixado a extenuante tarefa da preparação das caixas de papel para galopar de um lado a outro do gabinete com o já crescido e sorridente de dentes cerrados Musca sobre seus ombros. Ambos pareciam se divertir à grande. Porém, ao passar o olhar de retorno diante à sala de Moréia, foi com estranheza que notou, além da ausência repentina de Croco, a imagem de um vulto circular e denso espremer-se contra a fresta ao pé da parede até desaparecer por completo na brevidade de um segundo. 

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