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ARMELAU – A PROCRIAÇÃO DE BILDO

Tudo na ZT3 Paper Company transcorria naturalmente, até que, numa bela manhã de verão, Bildo desse cria. Moréia festejou o nascimento do rebento de seu affair platônico como se a criaturinha tivesse surgido de suas próprias entranhas. Ainda que de modo não consensual, tudo em Bildo e Moréia culminava numa natural simbiose existencial.

Ambos viviam a sórdida rotina de planejar ínfimas trapaças, tramar pequenos trambiques e camuflar leves delitos. Tudo dentro da mais harmoniosa e oculta cumplicidade. Bildo ludibriava os clientes e entregava menos papel do que a ZT3 vendia e recebia da ZT3 valor bem superior ao que entregava. Moréia sabia da armação, apoiava e passava um pano sempre que necessário. Ambos tomaram gosto pelo ato de burlar e festejavam a cada truque bem sucedido. Traçavam pequenas metas sempre em favor de Bildo. Tudo era em favor de Bildo, contanto que fosse em detrimento de Armelau e dos demais vendedores. Enganavam a gregos e troianos e riam interiormente, satisfeitos por sempre encontrarem-se ilesos bem debaixo dos narizes dos clarividentes do subsolo da ZT3.

Na concepção de Moréia, por mais infame e inescrupulosa que fosse a manobra, Bildo deveria levar vantagem acima de tudo. Na fantasia da jovem senhora, A ZT3 era apenas um veículo para suas questões pessoais.

Quanto a Bildo, a pele de coitado rendia dividendos com os quais nem o próprio rapaz havia sonhado quando engendrou a primeira trapaça sob os auspícios de Moréia. Um contrato que acabaria por eliminar um concorrente foi o pontapé inicial na trajetória do farsante com sua tutora. Armelau sabia da tramoia de ambos e ficou indignado quando viu a maneira sorrateira com a qual Bildo assumiu posição em lugar de seu antigo empregador. Bildo não tinha champanhe, festejou com cerveja, linguiça e farofa.

Bildo vivia oculto na pele de coitado. Erguia a bandeira de neto bastardo do seu bisavô e seguia sua marcha modorrenta. Trazia escrito em sua testa a frase de autopiedade, suavizava a voz em um tom nasal lamurioso e fixava seus olhos súplices sobre seus interlocutores como se tivesse o dever de explicar a todos os supostos erros do mundo em desfavor de si. Por seu turno, Moréia destilava em uma imensurável coleção de intrigas e picuinhas o seu dissabor por ser eternamente mal amada no amor. Sua vida era um quadro em preto e branco. Vivia só e solitária. Todas as suas relações pessoais terminavam corrompidas em meio a intrigas e fofocas. Bastava que alguém fizesse qualquer coisa que a contrariasse em seu dia para que a mulher alugasse dezenas de orelhas para desfiar sua narrativa maledicente como se todo desafeto seu devesse ser odiado também pelo mundo inteiro. O caráter de ambos reultava num duo perfeito.

Antes da chegada de Bildo, Armelau e os demais vendedores viviam uma era de paz em seus pequenos gabinetes atrás de suas minúsculas mesas. Armelau era centrado demais em si próprio para perceber que Moréia projetava nele seus sonhos mais secretos e inconfessáveis. Assim como fez com todos os outros encarregados de vendas antes dele, a mulher lançou no sonâmbulo suas projeções amorosas emboloradas no fungo da frustração. Imaginou correr com o então novo funcionário de mãos dadas por um canavial dourado. Ver o dia amanhecer com o rosto deitado sobre o provavelmente cabeludo peito do prestidigitador sonolento. Tomar banho de rio em águas barrentas e secar o corpo nu sobre as pedras negras e sob o sol da manhã dos amantes. Tomar hectolitros de licor de jabuticaba na mesma taça do encarregado. Repartir o lanche de carne de carneiro no final da balada. Casar. Ter filhos. Um lar enfim.

Mas para desespero da senhora que chegou à idade sem ter se casado, Armelau em nada correspondeu às suas expectativas. Sem dizer palavra, o encarregado manifestou o não às intenções da mulher e despertou nela um ódio tanto inexplicável quanto inesgotável. Se um dia ela se ocupou em lançar aos quatro cantos da ZT3 pétalas do quanto Armelau era adorável em seu modo onírico de ser, após o desencanto ocupou-se quase que exclusivamente em difamar o taxidermista amador distribuindo cardos que jurava serem frutos da própria queratina do funcionário.

E em um cenário onde tudo desfavorecia Armelau, ele tomou um copinho plástico de café, a fim de rechaçar o terrível sono matinal. A porta de sua pequenina sala abriu-se por vontade própria. Na salinha contígua, Bildo surgiu de pé, para em seguida agachar-se, abaixar as calças, erguer a calda, esguichar um fluido odorífero pelas glândulas recônditas e urrar como que sentindo espinhos romperem por sua cloaca. Foi o nascimento de Musca, ato presenciado pelo atônito Armelau. Bildo enfim deu cria.

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