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CAFÉ, MAGREZA E SUSPEITAS

Agora estou atrasado. Estaria adiantado, não fosse o ladrão ter aparecido. Entraria no banho vinte minutos mais cedo e, por conseguinte, chegaria também vinte minutos antes do horário ao trabalho, o que seria ótimo para organizar algumas pendências.

Mas então o telefone tocou. Atendi. Era Adélia. Dizia que havia um carro prata, muito parecido com o nosso, da mesma marca, porém doutro modelo, estacionado diante de nossa casa e com um sujeito magro e muito esquisito ao volante.

Bem, minha família acabara de deixar nossa casa em nosso carro e retirou o veículo da garagem passando por de trás do veículo suspeito estacionado à entrada. Atualmente não mora ninguém na casa da frente. A casa ao lado, a da esquina, faz frente pra rua perpendicular à nossa. As outras casas próximas não são de receber tipos estranhos, ainda mais um sujeito magro que aguarde dentro do carro antes das sete horas da manhã de uma quarta feira útil.

No interior da casa, eu me agito. Os pensamentos aceleram e começam a girar tecendo conjecturas variadas. O café, tomado em jejum, é absorvido pela corrente sanguínea e age como combustível extra ao stress da situação. O pulso ganha velocidade e provoca ardor no coração, progressivamente mais turbulento. As notícias de violências, invasões, assaltos ocorridos em dias comuns de semana, tudo adquiri contorno de real terror.

Pode haver um ladrão sim, bem agora, diante de minha porta, imaginando que a casa tenha ficado desocupada a partir das sete e apenas aguarde o momento exato para saltar do carro e iniciar suas vis ações criminosas. Arrombar a porta e adentrar a casa. Ele não imaginaria haver ali dentro ainda o dono a se preparar para sair uma hora após os demais habitantes do lugar.

Abri a porta da sala e fui até a caixa do correio espiar pela fresta, que oferece uma diminuta faixa de visão da rua.

E vejo. Vejo o carro prata. Dentro, o tal sujeito magro e muito suspeito. Ele veste uma jaqueta preta com detalhes vermelhos; uma muito parecida com a que o Michael Jackson usou no clipe de Thriller, porém com a disposição das cores invertida. Tem um celular na mão. Olha o celular, depois o aperta na palma da mão, olha novamente. Tudo indica uma espera ansiosa.

Estando a três metros de distância, não vejo o seu rosto nitidamente. Meu campo de visão é limitado. Mas também eu não sou visto do lado de fora.

As mãos ossudas, mãos inquietas, nervosas e ansiosas, mãos que suponho sejam de um ladrão prestes a executar um crime. São mãos estranhas demais para um homem honesto. E o sujeito está muito ansioso pra alguém que não fará nada de errado.

Por outro lado, pode ser que ele seja mesmo magro por conta de um metabolismo demasiadamente acelerado e não pela ansiedade crônica que o toma antes de cada crime. Conheço pessoas assim. O pai da amiga de minha filha, por exemplo, é um sujeito magro e come feito um desesperado. No entanto, a esta altura, eu já nem sei de nada. Afinal não são os gordinhos que costumam ser ansiosos e comem desesperadamente para satisfazer a ansiedade, e desenvolvem compulsão alimentar, e adquirem problemas com o peso? E pode ser que ele seja de fato um ansioso de longa data e tenha ingerido muito café antes de sair de casa, agravando assim o quadro. Todos sabem que café em demasia causa agitação.

Mas afinal, o que um sujeito tão magro faz parado diante minha casa num horário em que aparentemente todos saíram para trabalhar? É um ladrão. Só pode ser. Ligarei para a polícia. Ligarei para a polícia, já está resolvido. Pronto.

Outro pensamento chega espavorido. A qualquer momento a Rosalma chegará para passar a roupa e acabará pega pelo bandido, que a fará abrir o portão e entrará em casa com ela feita refém. Preciso ligar imediatamente para Adélia e pedir para que avise a Rosalma para não chegar agora, pois estou chamando a polícia e o sujeito parece extremamente perigoso e determinado. A polícia virá e abordará o cidadão que, vendo-se cercado, não reagirá e permitirá sua revista e a do veículo. Encontrarão a arma do assalto e o pé de cabra do arrombamento. Tudo será resolvido.

Adélia entendeu o recado e se comprometeu em contatar a funcionária e alertá-la para que não se aproxime do local onde o roubo está sendo engendrado por aquele abjeto monstro ansioso e descompensado. Rosalma estava a uma quadra de distância e ficou aflita com o recado, paralisada. Disse que aguardaria nova ligação para saber se já poderia chegar ao trabalho. Quis prender Adélia ao telefone, mas Adélia tinha já cliente e tinha que desligar para continuar o trabalho, mesmo que tensa.

Vou mais uma vez até a caixa do correio e observo o criminoso. Não posso ver de modo algum o seu rosto, mas aquelas mãos... Aquelas mãos não deixam dúvida. Aqueles dedos longos estão se aquecendo para aprontar as piores ações concebíveis por aquela mente doentia. Ele é magro demais para ser honesto e inocente. Mário Prata certamente concordaria comigo e teria absoluta certeza de tratar-se de um ladrão feroz e ainda notaria outros indícios que não alcancei em minhas observações turvas pela adrenalina da situação extrema.

Ligo para a polícia, porém não me identifico. Narro toda a situação e o cabo fala com um soldado enquanto me pergunta sobre a aparência do sujeito e de como ele está vestido. Há um agitamento perceptível do outro lado da linha. O cabo pede para que o soldado deixe o arrombamento para depois e vá primeiro tratar de minha denúncia. Pede pra que eu diga mais uma vez o endereço e confirma que será enviada uma viatura, que por sinal já se encontra nas imediações.

Percebo que minha descrição do que via causou uma reação elevada no policial. Será que o que eu disse confere com a aparência do arrombador que está sendo procurado logo cedo? Será que aquele estado de agitação é normal no policial, que pode ter passado a noite em rondas e ocorrências de seu plantão e que, sob efeito de muito café, já não contêm sua ansiedade por estar muito pilhado?

A polícia não vem logo e decido ir mais uma vez ver se o sujeito desistiu do crime e evadiu-se do local. Porém ele permanece lá, com suas mãos nervosas e agitadas. Os minutos assumem a forma de uma eternidade. Tomo uma arma em punho e decido que haverá luta. Agora sou eu ou ele. Não há como fugir da verdade humana. Somos todos selvagens.

Há barulho na rua. Talvez a polícia o tenha abordado e já o tenha algemado. Vou mais uma vez até a fresta da caixa do correio. O carro ainda está lá. Porém o sujeito deixou o local. Conversa agora com meu vizinho da direita, o que sempre está viajando. No estante seguinte, ambos passam no carro do meu vizinho e o carro do suspeito é deixado diante de minha casa. O mistério parece solucionado. Pelo modo e tempo pelo qual conversaram amigavelmente, trata-se de um conhecido do vizinho.

Agora posso tomar meu banho em paz, mas ainda tenho que ligar avisando para que Adélia avise Rosalma de que está tudo em ordem; também ligo para a polícia e aviso ao cabo que tudo não passou de um mal entendido.

Entro no banho e ouço o abrir do portão. Rosalma já está em casa e iniciou seus trabalhos. Preparo-me para sair. Deixo o quarto e encontro Rosalma na sala, passando as roupas. Pergunto se recebeu o recado e digo que está tudo bem agora. Ela diz que já sabe e que o carro que está lá fora é do filho de uma irmã da igreja.

Parto para o trabalho num passo apressado, já estou atrasado. No meio do caminho, tenho um sobressalto. Afinal, quem é que pode garantir que meu vizinho, Rosalma e o filho da irmã da igreja não fazem parte de uma terrível quadrilha de assaltantes?

Comentários

  1. Olá Jefferson! Faz tempo hein! :-)
    Você escreve muito bem e anda muito estressado. Talvez seja o café. Deixa o "magro" na dele...
    rsrsrsrsrsrs
    Tenso!

    Abração
    Jan

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    Respostas
    1. Oi, JAN! Que delícia você aqui! Olhe, é só ficção. Eu quase nem tomo café e nada tenho contra os magros. Até quero voltar a ser um algum dia [rindo]. Beijão, querida! Muito obrigado pelo carinho da atenção!

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  2. Nossa, você escreve muito bem. Parabéns.. Senti a tensão do personagem principal durante o desenrolar do texto, adorei.

    Abraços!

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    1. Que bom que gostou! Obrigado por sua atenção, Ianara. Grande beijo!

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  3. Grande Jeff....sempre intenso e pegando bem no íntimo...gosto muito desta sua escrita....você pega pontos comuns do cotidiano e os expõe de forma simples, mas bem no meio do fígado!

    Abraço, meu irmão!

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    1. Grande, Castellar! Fico muito honrado com seu comentário generoso, amigo. Eu tento. Mas sou apenas um aprendiz no pugilato da literatura. Grande abraço!

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  4. Respostas
    1. Oi, Sonia! Que bom te ver aqui! Você é muito gentil. Obrigado pelo carinho e atenção! Grande beijo!

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