Sem mais esperar, desviou-se de suas próprias dúvidas e incertezas, meteu a mochila nas costas e seguiu caminho, a pé, até a rodoviária. A passagem estava comprada desde a véspera. Não havia motivo para desistir de seu intento e abandonar o planeado. Já estava tudo escrito. Chegando o momento certo, teria finalmente a aguardada oportunidade da vingança. O ônibus partiria as vinte e três e quinze, conforme previsto. De Matheus Lacerda à Casa Violácea, seria viagem para dez horas ou mais.
Além da muda de roupa que trazia no corpo, constituída por calça jeans preta e camisa xadrez em preto, azul e branco, preparou trocas para apenas uma semana. Calçava macios sapatos pretos de pelica. Dentro da mochila, também colocou um par de tênis próprio para corrida, com amortecedores e bem leve, pois poderia ser útil numa eventual fuga. Enroladas em camisetas pretas estampadas com bandas de rock, levou consigo três facas virgens de lâminas bem afiadas, a ponto de cortar papel.
Era certo que ninguém o revistaria. Não é prática das empresas de transporte rodoviário a rotina de revistas. Além do mais, ele não era em nada suspeito, tinha aparência comum: branco, sobrepeso, um tanto quanto calvo frontalmente, orelhas bem separadas, aparentava recentes quarenta, barba rala, óculos de armação preta e lentes grossas, estatura média, também era desprovido de tiques e ou cacoetes, sorria fácil e tinha o olhar razoavelmente inteligente, um aspecto todo gentil, perfeito cidadão pacato e mediano.
Até Cidade do Sudeste, fez viagem razoavelmente confortável. Apenas seu braço esquerdo viajou um tanto quanto retraído; hora colado ao tórax, hora cruzado com o direito, hora disputando o braço móvel de separação entre as poltronas. É que a ocupante de sua poltrona vizinha era obesa e restringiu um bocado seu espaço durante o percurso. A mulher roncava e eliminava gases quase que o tempo inteiro, concomitantemente. Com o ar condicionado ligado e, claro, todas as janelas fechadas, faltou pouco para que ele achasse ser o caso de abrir uma das janelas de emergência.
Ao trocar de ônibus no terminal rodoviário de Cidade do Sudeste, viu subir a bordo três policiais militares, que certamente iriam trabalhar em Casa Violácea, mas isso não o afligiu e nem perturbou em nada; viajou sozinho em poltrona dupla. Desembarcou no meio da manhã do dia que seguiu ao de sua partida, uma bela manhã colorida e de sol resplandecente.
Ao colocar o pé no terminal rodoviário, sentiu que teria problemas para encontrar um bom hotel onde pudesse organizar o plano e continuar sua meditação. Pedintes e hippies circulavam a intervalos pelo terminal e, ao tentar informar-se de como faria para tomar um táxi, vários mendicantes o abordaram de modo inquisitivo. Com grande dificuldade, desvencilhou-se da horda de pedintes e adentrou o primeiro táxi que viu estacionado na fila. Disse apenas para que o chofer seguisse em frente e somente quando deixou o terminal pediu para que o conduzisse a um hotel limpo e de diárias justas no centro.
Até quem não era do local perceberia claramente que o taxista desdobrava-se em cabriolas inúteis pelo trânsito confuso antes de finalmente estacionar à porta do soturno Hotel do Comércio com vários quilômetros registrados em seu taxímetro. E não levou muito tempo para perceber que o Hotel do Comércio ficava justamente ao lado do terminal rodoviário.
Durante o tortuoso percurso, a cada semáforo que paravam, uma turba tumultuosa desdobrava-se em milhares de artifícios por algum trocado. Em cada lugar um novo talento o assaltava a atenção. Eram malabaristas, vendedores de balas, portadores de necessidades especiais malabaristas e vendedores de balas, cuspidores de fogo, vendedores de água, artistas performáticos, gente fazendo artesanato com canivete em longas folhas de capim verde...
Ao saltar diante do hotel, fora interpelado por um grande contingente de pequenos famintos de caras sujas e mãos direitas estendidas e espalmadas a esperar por alguma moeda da providência divina. Tinha a nítida impressão de que permanecer por mais tempo na rua seria o mesmo que oferecer-se em sacrifício carnal humano para aliviar a fome daquelas numerosas bocas súplices. Era impossível não adentrar logo de uma vez ao estabelecimento a fim de colocar-se livre daquele delírio e suas ideias novamente em ordem.
Olá, Jeferson
ResponderExcluirSerá que você ainda se lembra de mim???
Já lá vão quase quatro anos desde a última vez que "conversámos"...
Ontem, ao fazer uma busca nuns posts meus antigos, vi um comentário seu, e enão me lembrei: há quanto tempo!
Cliquei em cima de seu nome e vim cá direitinha!
Tinha perdido seu rumo por completo.
Bom, estive lendo esta última postagem, que achei muito interessante, mas me pareceu que seria continuação de algo escrito anteriormente. E assim... tive que andar para trás, para me inteirar.
Estou a gostar muito.
Espero agora não te perder de vista:)))
Se quiser visitar-me... sabe onde me encontrar. Presentemente só o meu blog «A Casa da Mariquinhas» está activo. Como estou escrevendo o meu segundo livro, não tenho tempo para mais.
Espero por você lá.
Uma boa semana.
Beijinhos
Legal! E que bom que está trabalhando já seu segundo livro! Parabéns! Vu já. Beijo.
ExcluirJefão!! Sensacional, não canso de dizer o quanto gosto das suas crônicas...loucas viagens que me fazem ir longe aqui...
ResponderExcluirMas hoje estou aproveitando para lhe desejar um feliz aniversário, com muita felicidade, paz e saúde!! Que continue esta grande escrita!
Abraço, meu velho!
Obrigado, Castellar! Sempre generoso o amigo. É muito bom poder contara com você. Obrigado por toda atenção e amizade de sempre aqui. Um grande abraço!
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