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Mostrando postagens de junho, 2012

O CHUPA CANAS

‘Não agüento mais este serviço. Preciso arranjar outro. Você não sabe de outro lugar onde estejam precisando de gente pra trabalhar?’ Ela não era bem o tipo que preenchia os padrões dos perfis ao longo do percurso de um emprego. Vivia recentemente empregada, desempregada, e à procura de trabalho. Era o tipo que sempre tem uma sogra para levar à consulta, um filho para levar ao pronto socorro, uma tia para levar à farmácia para tomar uma injeção qualquer, uma mãe agendando uma cirurgia que nunca acontece, ‘diabo de SUS este onde a fila não anda’, ela dizia. Após o primeiro mês, frequentemente faltava ao trabalho e se justificava pelo momento e comportamento da saúde pública no país, a saúde pública calamitosa de seus familiares, os legítimos e bem conhecidos representantes do povo, da nação brasileira. Mas na verdade ela já não estava bem na floricultura. E nada que é pra ser eterno dura para sempre, e então veio a infelicidade no novo emprego. Eram tantas as flores, eram tantos líri

AGORA OLGA FEZ IOGA

E estando o objeto quase todo regurgitado pra fora da bolsa, exibia detalhes que Mestre Raimundo examinava com imensa atenção e surpresa a cada vez que passava, à passo lento, introspectivo. Seus velhos e bons olhos não alimentavam qualquer dúvida quanto à natureza do objeto exposto. Viu que era uma pequena e delicada peça, não nova, pois não tinha o brilho das novidades. Mas viu também que não era velha, pois não estava desbotada, nem opaca. Verde garrafa saindo de dentro da bolsa que Olga depositara ali sobre o banco, descuidada, juntamente com sua velha blusa de lã cinza. A cada volta, a certeza de Mestre Raimundo gritava e mais revelava a natureza do objeto adereçado ornado de cetim na mesma cor, porém em uma tonalidade mais forte. O objeto misterioso era uma obra fina, rara, uma coisa apropriada somente em ocasiões muito especiais. Mestre Raimundo estava maduro e experiente o suficiente para que o mundo não lhe aterrorizasse com pequenas surpresas. Bem verdade, que nem surpres

OLGA FAZ IOGA

Ela vinha, sei de onde, ninguém ousaria duvidar, era pessoa insuspeita, séria, imaculada, ela vinha do trabalho, é claro. Do trabalho e de nenhum outro lugar. Era horário de serviço terminado. Era o tempo exato de ela chegar ao Galpão Tântrico TL101 caminhando à pé pela calçada. Vinha com a roupa uniforme de trabalho. Vinha esbaforida, apressada, atrasada, obsequiosa, resfriada, muito, mas muito resfriada mesmo. Olhos quase cerrados e lacrimosos, voz fanhosa, coriza contínua, postura cansada, desalinhada. A sessão de ioga já havia começado há dez minutos. Os colegas se aqueciam, se alongavam, respiravam com especial atenção ao diafragma, assumiam posturas incomuns ao cotidiano. Os colegas, os outros alunos, já iam mergulhados em seus interiores, já desciam em busca de seus âmagos trajando malhas de mergulhadores de âmagos. Naquele dia, a solidão que sempre a acompanhava e sempre era visível no tom de sua voz, em suas histórias, em seu semblante, em seu sorriso contido, quase triste,

GENÉRICO GENTIL

A mulher esganiçava sua voz tentando superar o grave timbre da voz do companheiro. Ele cobria a voz dela como um trovão que estronda no céu sobre as cabeças atordoadas dos frágeis mortais que não possuem abrigo às tempestades. Afirmava com enérgica autoridade e convicção de pedra que ela havia dormido sim, que ela havia dormido era muito, e que ele a havia visto dormir, roncar a noite inteirinha. E dizia ainda que não havia essa coisa de insônia nenhuma, que a insônia dela era falsa, uma farsa, preguiça, uma coisa do capeta. Por fim, a vizinha silenciou de vez. O homem, insatisfeito, continuou dizendo em sua fala cantada e cheia de sotaque que aquilo não tinha futuro nenhum, e que depois não adiantaria os apelos da mulher. Disse que ela iria lamentar muito, pois ele iria embora. Dizia que iria cuidar da vida dele, que aquilo não tinha futuro, que a mulher era uma dorminhoca. Nos minutos seguintes, tudo pesou em silêncio. Genérico seguia com a sessão. Terapeuta e cliente tinham su