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Mostrando postagens de dezembro, 2011

O CÍNICO

“Você tá falando sério que nunca ouviu nada sobre Diógenes, a lenda Diógenes, o cínico, o filósofo, o grego? O discípulo de Antístenes, que foi discípulo de Sócrates, não conhece mesmo? Francamente, você é um fisioterapeuta. Um doutor! Ou não é doutor o fisioterapeuta? Então. Doutor fisioterapeuta! Deveria saber, oras. O Tonho! Tonho! É surdo. Por favor, chame aqui aquele safado do Antonio José, o cínico. Rá, Rá, Rá, Rá. Antonio José, o cínico. Esse você conhece? Pois é, chame aquele ordinário que eu quero dá uma mijada e ele consumiu com o meu negócio de mijar. Eu esqueço o nome daquele troço. Papagaio! Isso! Levou o papagaio pra lavar lá fora e até agora não trouxe de volta. Malandro. Aí ele! O Tonho, cadê o papagaio? Então vá logo que eu to apertado! Como eu ia dizendo, Diógenes foi um filósofo grego. Dizem que viveu entre 413 e 323 a.C.. Foi um sujeito interessante até. A filosofia dele, a qual ele seguia, a escola cínica, desprezava tudo quanto era riqueza, conforto, convenção.

ESTADO ANÍMICO

Estou em meu estado anímico. Preciso ter pressa em escrever para que não retorne ao estado puramente animal perdendo assim o ímpeto narrativo. Quero falar de um amigo. E é preciso estar em estado anímico para falar desta alma iluminada. Ele foi, sem a menor dúvida, um dos pacientes mais interessantes que tive até aqui em minha carreira como fisioterapeuta. Era artista plástico e, segundo o próprio, de reconhecimento nacional e, ocasionalmente, internacional. Sua matéria prima era composta por retalhos, madeira e sucatas das mais diversas origens. Debruçava-se por horas sobre aquelas formas sólidas e ali lutava até conseguir dar nova versão ao emaranhado disforme. Costumava dizer que não fazia nada demais e que qualquer esfomeado ou famigerado seria capaz de travar a mesma luta com êxito equivalente, caso fosse o caminho apontado rumo ao que lhe saciaria o apetite. E concluía dizendo que era ele próprio um esfomeado famigerado pela vida. Seus amigos eram todos desajustados pe

NATAL MACABRO

Ainda é Natal [gosto disso]. É com certeza a data que mais gosto no ano. Tenho a sorte e a alegria de estar em família [outra coisa que venero na vida]. Estamos todos bem [isso é mágico]. Divertimo-nos com muita naturalidade [temos apenas o suficiente, e isso nos basta]. Não troco o meu Natal em família por nenhum outro Natal do mundo. Minha alma sorri e canta essa alegria sincera de viver. E não sou um desavisado. Sei que o tempo escoa, o elenco se renova, os seres perecem [sei que os nossos Natais são contados]. Os tenho como verdadeiras jóias [dádivas do Mestre]. Se eu fosse o magnífico Ferreira Gullar, esse seria o momento de puxar alguma memória dos Natais passados e entremear com o Natal presente com elegância, maturidade e ressonância. Não sendo um Gullar, sigo com meu ‘espírito uvas frescas, cerejas, pêssegos maduros, figos em calda, passas e castanhas’. Comi com singular moderação. Bebi apenas o suficiente para não deixar de beijar o lábio de vidro da taça e sorve

O CHEIRO DO DIABO

Bateu no portão, e, enquanto aguardava, tomou um pouco da chuva fina que caía naquela manhã de céu impenetravelmente nublado. Vendo que ninguém vinha atendê-lo, levou a mão à maçaneta e pode perceber que, como sempre, estava aberto o portão. Abriu um pouco. Apenas o suficiente para perceber que estava destrancado. Assim, pressupôs que houvesse gente no interior da casa. Fechou o mesmo logo em seguida, mas houve tempo para vislumbrar pela fresta da abertura o cãozinho, aparentemente esquizofrênico, saltitando eufórico atado ao arame por sua corrente corrediça. Bateu novamente e aguardou. Dessa vez, teve mais sorte. Dona Amélia veio atendê-lo. Pediu para que entrasse e não reparasse por ela não lhe apertar a mão, pois estava com as suas molhadas e ensaboadas. Thor Nelson, que já estava apreensivo por sua entrevista de trabalho, não disfarçou a pressa em ir direto ao ponto. Entrou ultrapassando o som do próprio bom dia que proferiu mais pra dentro de sua boca do que para fora. Dona Amélia

O GALO ERA UM BODE

O galo cantou. Aquele maldito galo deveria sofrer de algum distúrbio do sono. Cantou quando era uma hora. Tornou a cantar quando era uma e vinte e sete. Ele sentiu vontade de matar e comer o bicho. Sempre que o galo cantava após a meia noite, sentia vontade de degolá-lo com as próprias mãos, esgotar-lhe o sangue até a última gota, e comer o bicho ao molho pardo. Não que apreciasse tal iguaria. Na verdade, na verdade, jamais havia provado o prato. Imaginava comer o galo ao molho pardo por lhe parecer um requinte de sofisticada crueldade alimentar-se do bicho embebido em seu próprio sangue. Tinha fome e sede de vingança. Mas o galo era um bode. Sim, o galo era apenas um bode expiatório. Bem como o calor insuportável, o despertar tardio ao meio dia daquele domingo e, principalmente, a possibilidade de acontecer a entrevista de trabalho na manhã que seguiria. Tudo lhe tirava o sono naquela noite e lhe trazia pensamentos tumultuados e inquietantes relacionados aos acontecimentos dos últimos