Caro irmão, ainda no dia de hoje, pela manhã, voltei a refletir sobre o teor daquela nossa última conversa, a ocorrida via internet. E meditei em suas palavras por um bom quarto de hora. Quando disse em resposta à carta anterior: “Aquele surf de rio era bão demais da conta!”, por ventura, tal frase não seria o mesmo que dizer: “Somos hoje o que éramos ontem”?
Medite um pouco comigo, irmão, não há nada de original em sua exclamação? Não seria talvez a manifestação de você e sua alma interiorana travando um conflito à procura de seu verdadeiro cerne primitivo? Se me permite, em minha módica opinião, aquilo nada mais foi que sua alma pedindo voz. Suas entranhas exalam poeira vermelha, meu irmão. Parasitas de nossas águas ainda moram em seus intestinos agora viajados.
Contudo, é preciso admitir que muito cedo Ituverava tornou-se pequena demais para conter seu espírito indomável e sua fome de mundos distantes. Em toda parte por onde meteu sua cara reluzente, sempre fora o centro das atenções. Era o Cocão das gentes, a coqueluche do povo, o ladrão de corações. Cocão isso, Cocão aquilo, foi o Cocão, é do Cocão, Cocão, Cocão, Cocão... Lembra?
Não havia em nossa cidade uma única roda de conversa, um único banco de praça, uma única mesa de bar em que o principal assunto tratado fosse outro além das peripécias do endiabrado filho da dona Seleide. Não era grande e nem forte, mas de cara e mãos limpas compensava suas limitações físicas com a coragem de um bárbaro, a inteligência de um rato e a audácia de uma capivara em fuga.
Devasso era, arruaceiro sim, matreiro também. Porém, da fonte do carisma bebeste até à embriaguez degradante. Tudo o que aprontava era tolerado por todos. Das beatas até as trabalhadoras do Largo do Rosário, Cocão gozava de imunidade moral. Quanta inveja você despertou, hein! E, pra dizer a verdade, desperta até hoje, meu caro Tas. As chaves da cidade repousam em seus bolsos, irmão. Faça chuva ou faça sol, eternamente suas elas são.
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